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Náuseas

Neuras do dia-a-dia

Neuras do dia-a-dia

Náuseas

12
Ago20

Citações, de "A Colmeia", de Camilo José Cela

náuseas

O autor de "A Colmeia" não parece ser alguém que eu gostasse de conhecer pessoalmente.  Aparentemente ligado ao regime de Franco, não deve parece ter sido muito boa pessoa.  E o filho que o diga.  Mas aqui ficam duas frases (completamente fora de contexto) que me ficaram na memória.

"De grandes ceias estão as sepulturas cheias."

(um ditado popular.)

"É mais triste um títere degolado que um homem morto."

 

11
Ago20

A Obra ao Negro

náuseas

Terminei há dias de ler "A Obra ao Negro" de Marguerite Yourcenar. Não foi a minha primeira tentativa de ler uma obra da autora belga. Há uns anos tentei ler "Como a Água que Corre", mas desisti. Não me lembro de nada do que li, lembro-me de que não gostei. "A Obra ao Negro" também não me agradou e foi provavelmente a última coisa que li de Yourcenar. Na realidade, estive quase a desistir por volta da página 60, mas algo me obrigou a concluir um livro dela.  Como a vida é demasiado curta para a quantidade de livros que há para serem lidos, nunca (ou muito raramente...) me obrigo a terminar de ler um apenas porque o comecei!

Quando leio um romance, geralmente a sua história, por muito boa que seja, raramente é aquilo que me seduz. Há excepções, claro. Por exemplo, no realismo mágico consigo ficar preso à história do princípio ao fim. As histórias do Salman Rushdie, do García Márquez, ou do Saramago costumam deixar-me maravilhado. Mas a regra é que normalmente a história não chega. E em Yourcenar o que me sobra depois de se retirar a história é muito pouco. Claro que ela sabe escrever bem, quem sou eu! É uma escrita bastante clara, fluida e fácil de seguir.

E é claro que aprendi muitas coisas com a história de Zenão neste romance. Por exemplo, obrigou-me a ir investigar o que foi a rebelião de Münster.  Recomendo que vão procurar à wikipedia, mas em resumo: no século XVI, um anabaptista radical ("anabaptista"? Ou "anabatista"? Não tenho o dicionário aqui à mão) tentou aí criar a "Cidade de Deus", e obviamente terminou em massacres horrendos. Gostei de alguns diálogos mais filosóficos que vão aparecendo, das alusões a factos e pessoas que todos conhecemos do Renascimento (especialmente em Itália). Mas é pouco. Muito pouco. Mas vão ler e tirem as vossas conclusões.

 

31
Jul20

O efeito da solidão em Groselhas

(Notas para um conto)

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O Groselhas é um amigo que conheci há cerca de cinco anos. É claro que ele não se chama Groselhas. Mas quando o conheci todos lhe chamavam Groselhas, de modo que só muito depois de o conhecer é que realmente lhe conheci o nome. Mas continuo a chamar-lhe Groselhas. É um tipo dois ou três anos mais velho que eu, um pouco mais baixo e gordito. Anda sempre dobrado e quando fala é difícil entender o que diz. Não que fale baixo, mas há algo no modo como pronuncia as vogais que torna a sua voz quase ininteligível. A voz é grave, de barítono, quente, mas parece ter a garganta demasiado apertada e as palavras saem-lhe esganadas.

Bom, mas não era nada disto que eu queria dizer. O Groselhas é um amigo que conheci há uns anos, quando comecei a frequentar a piscina municipal. Nessa altura eu conhecia lá ninguém, mas o Groselhas vem logo ter comigo. (Lembro-me de ter tido uma dificuldade monstra de o entender nesses tempos. Depois habituei-me.) Descobri que é um tipo excelente, muito sincero, óptimo conversador. É músico amador, toca saxofone na filarmónica da terra dele e adora falar sobre música. Ganhei o hábito de ir para a piscina mais cedo para conversarmos. Ele falava sobre Mahler, Bruckner, a segunda escola de Viena. E eu respondia como podia.

Claro que tudo isto acabou há uns meses quando fecharam as piscinas. Deixei de ver o Groselhas duas vezes por semana. Não tinha nenhum contacto dele, nem sequer sabia onde morava. Encontrei-o há dias acidentalmente. Lá ia todo curvado, mais gordito, de máscara. Cumprimento-o. Ele hesita um pouco e finalmente lá me responde. Mas não com o entusiasmo que lhe conhecia. Parecia cansadíssimo, desgastado. Perguntei-lhe como andava, o que lhe tinha acontecido durante este tempo todo e como é que tinha aguentado tanto tempo sem dar umas braçadas na piscina. Não se alongou muito nas respostas, que estava tudo bem, "Cá se vai andando com a cabeça entre elas" ("elas", as orelhas, para quem não identifica a referência que o Groselhas fez à música do Sérgio Godinho). Pouco falámos, mas consegui perceber que algo fundamental mudou no meu amigo durante este período. Não me falou de nenhum compositor obscuro que tinha descoberto, nem de uma nova gravação que tinha arranjado da sinfonia do Berio.

Fiquei-lhe com o número de telefone. Já lhe liguei, vamos beber uma mini amanhã.

30
Jul20

Pequenos nadas

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Passou-se isto há uns dias, num dia de imenso calor, ao fundo do Quebra-Costas em Coimbra. Quem conhece sabe bem o inferno que é subir aquela escadaria rumo às Sés (Velha e Nova). Principalmente num dia de calor como era aquele.

Numa esplanada logo a seguir ao Arco de Almedina estava uma família numa esplanada à espera que lhes servissem o almoço. Bebericavam as suas bebidas moles enquanto observavam o sofrimento de quem passava. Muitos turistas subiam e desciam aquela via, a maioria com ar abatido. Ao fundo, ainda a passar o arco, uma velhinha arrastava um saco, qual Sísifo ao iniciar mais uma ascensão. Empurrava a sua rocha com visível sofrimento e, chegado ao primeiro banco, sentou-se a descansar.

Entretanto, a tal família (pai e mãe nos quarenta, filha nos quinze), observava o suplício. Breve troca de palavras. "Coitada! Podia ir levar-lhe um pouco desta água." "Não sejas louca, achas que ela ia aceitar assim água de estranhos? Primeiro não tens um copo extra. Ainda por cima ela vai sem máscara."

Cerca de dez minutos volvidos, a velhinha lá ganha coragem e recomeça a escalada. "Pobre mulher. Achas que vá ajudá-la?" "É contigo. Se te apetece ir com ela, a carregar-lhe o saco sabe-se lá até onde, podes ir." A mãe hesitou um pouco. Colocou a máscara e foi ter com a velhinha. Ela não se fez rogada. Desdobrou-se em agradecimentos, passou-lhe o saco e a carteira, agarrou um braço da mãe e lá foram as duas. A velhinha a mancar e a mãe a servir de muleta. A velhinha morava num prédio um pouco acima, por isso a mãe regressou ainda antes do almoço chegar.

Durante a sua ausência: "Não sei como a mãe consegue. Eu não tenho coragem. Mesmo que queira muito ajudar, não consigo fazer o que a mãe fez." "Pois é, a mãe é assim. Ainda bem que temos pessoas como ela. O mundo estaria condenado se todos fossem como nós os dois."

Passou-se há poucos dias atrás. Eu vi. E também não fui ajudar a velhinha.

29
Jul20

Náuseas (2)

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Sempre me perturbou olhar o fundo escuro de um bosque em quincôncio. A sombra verde salpicada de luz relaxa-me mas desperta-me também uma inquietação que não consigo precisar, uma inquietação muito antiga. Consigo ficar imenso tempo a olhar o bosque, esquecido de tudo. Mas aos poucos a inquietação inflama até se tornar intolerável, e sou dominado por um terror quase religioso que me obriga a
afastar bruscamente os olhos, ou a fecha-los. É o mesmo pavor dos sonhos em que paralisamos perante um perigo irracional. Provavelmente um medo semelhante ao que fez os nossos antepassados inventarem os deuses.

Mas gosto muito de olhar um bosque em quincôncio. Porque sei que o pavor está cá dentro e que vai aparecer lentamente. Porque sei que o consigo fazer desaparecer a qualquer momento, assim que não conseguir aguentar mais.

 

24
Jul20

Dubliners, The Dead

náuseas

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Reli há dias estes contos de Joyce, numa espécie de comemoração do Bloomsday em ponto pequeno (sim, porque Dubliners é tremendamente mais fácil de ler que o Ulisses). Confesso que me lembrava de muito pouco, apenas alguns dos contos me vinham vagamente à memória. Julgo que quando li Dubliners pela primeira vez o livro não me impressionou. Tudo sinais de que provavelmente o tinha lido mal.

A re-leitura fez-me ver tudo com novos olhos. Adorei todos os contos. Retratam uma Irlanda antiga, uma Irlanda presa à religião (ou religiões), uma Irlanda que lutava consigo própria, dividida entre aqueles que querem um país livre e os que vivem alegremente na vassalagem à coroa Britânica. Todos os contos mostram um pouco dessa realidade.  Mas foi o último destes contos, 'The Dead', que mais me impressionou.

Conta a história de Gabriel, um professor que também escreve critica literária para um jornal.  Começa por ser apresentado como alguém bastante seguro e adorado pelas suas velhas tias.  Mas vamos lentamente percebendo que Gabriel não é realmente assim tão seguro de si próprio.  Começa a notar-se isso quando ele se questiona acerca do discurso que preparou. Ou nos dois episódios com a Lily e depois com a Miss Ivors, em que fica embaraçado e sem saber como reagir.

O conto toca muitas outras temáticas, como por exemplo o nacionalismo Irlandês, com referências aos movimentos que tentam reavivar a própria língua Gaélica.  E para o final do conto o génio de Joyce reserva ainda uma surpreendente introspecção feita por Gabriel, depois de malograda a sua luxúria, acerca da morte e da vida banal que tem levado até então.  Como é que tudo isto cabe dentro de um pequeno conto?  E... como é que eu não me lembrava de que já o ter lido antes?

 

10
Jul20

fragmentos (4)

náuseas

Vai amanhã a enterrar o sr. António. Bom homem. Na sexta-feira parecia muito cansado quando ia para a música. Parece que o maestro da banda o tratava muito mal, implicava com ele por não conseguir já tocar o trombone. E neste último ensaio o sr. António saiu a meio, sem dizer uma palavra, depois de ter sido novamente humilhado pelo mestre. Levantou-se, com um ar muito admirado, arrumou os seus papeis, limpou o trombone e dobrou a estante da música. Não respondeu a nada que lhe diziam. "Já vai sr. António?". "Então, sr. António? Não vale a pena ficar assim". "Está tudo bem?". Regressado a casa, deitou-se, adormeceu e não voltou a acordar. A dona Amélia diz que o estranhou, mal lhe falou, nem quis comer nada. Lá foi.

Desde pequeno que tocava trombone. Passava horas a estudar os passo-dobles e as marchas de procissão. Maravilhava-se com a música, apesar de nunca ter sido um bom músico. Mas adorava vestir a farda aos domingos, e descer a avenida a marchar enquanto se concentrava no papel da música. Nunca olhava para ninguém, nunca respondia a quem o cumprimentava do passeio.

O sr. António parece ter descoberto nessa última noite que não havia já lugar para ele. E deixar de tocar na banda da música era coisa impensável. Como continuar a viver sabendo que no domingo a banda ia à rua e ele ficaria em casa? Decidiu então que tinha limpo o trombone pela última vez.

 

04
Jul20

fragmentos (3)

náuseas

Dia fresco. Levantei-me cedo como sempre faço aos Domingos. Não porque tivesse muito a fazer, mas apenas por hábito. Saí de casa e fiquei a ver o nevoeiro lá fora, que lentamente dispersava, com o sol a começar a adivinhava-se na claridade difusa de aguarela. Gosto de sentir o frio doce arrepiar-me a pele, a humidade matinal como se fosse uma língua áspera de gato a lamber-me as pernas.

Infelizmente, os sinos da igreja lembraram-me que era também o dia da festa da vila, e logo o estrepitar dos foguetes expulsou a paz que o dia parecia prometer. Dia de festa, de foguetes, de confusão. Arrastaram-se então penosamente as horas, num ruidoso dia com muitas pessoas.

E o sr. António não foi tocar. Tinha-o visto na sexta-feira, de bicicleta, com o trombone. Ia para o ensaio. Mas hoje, dia da festa, não estava na banda. No trombone ia apenas o rapaz novo. Algo se terá passado com ele certamente.

23
Jun20

Serenata Sintética

náuseas

Eis um curioso poema que hoje aprendi:

Lua
morta.

Rua
torta.

Tua
porta.

É de Cassiano Ricardo, um poeta brasileiro que desconhecia (na realidade não conheço muito da literatura brasileira). Foi-me dado a conhecer pela Ana Luísa Amaral, num programa da Antena 2 que sigo há já bastante tempo chamado O Som que os Versos Fazem ao Abrir (nome fantástico, de um poema de Emily Dickinson!).

Uma nota curiosa acerca do poema (dada pela Ana Luísa Amaral, claro!) é que é todo feito com pequenas mudanças de letras:

Rua torta.

Lua morta.

Tua porta.

Mais um poeta a investigar.

 

22
Jun20

fragmentos (2)

náuseas

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Acordar muito cedo e ficar quieta, a escutar o vento no pomar. É o meu momento preferido do dia. Sentir o dia a esperguiçar-se lá fora, a querer prolongar a noite mais um pouco. Digo a mim mesma que a madrugada não vai acabar, finjo acreditar que a doçura desta penumbra matinal durará para sempre. Por vezes, nesses momentos, gosto de me concentrar nos meus dedos dos pés e começar a sentir os dedos cada vez mais longe e eu a ficar grande, cada vez maior, enorme.  É uma vertigem que tenho desde criança, consigo sentir quase fisicamente a imensidão do meu corpo que se alonga infinitamente até ficar tonta e ter de voltar ao meu corpo.

Por vezes um pássaro lá fora, um cão a ladrar, um galo. Recordam-me que em breve tudo irá terminar e a vida irá retomar. Lembro-me novamente, não sei porquê, do sr. António. Disseram-me que a música lhe corre mal, que há não sei que chatices lá na banda. Há tantos anos lá, a tocar trombone, e agora tentam pô-lo fora porque não há já lugar para ele.