Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Náuseas

Neuras do dia-a-dia

Neuras do dia-a-dia

Náuseas

12
Ago20

Citações, de "A Colmeia", de Camilo José Cela

náuseas

O autor de "A Colmeia" não parece ser alguém que eu gostasse de conhecer pessoalmente.  Aparentemente ligado ao regime de Franco, não deve parece ter sido muito boa pessoa.  E o filho que o diga.  Mas aqui ficam duas frases (completamente fora de contexto) que me ficaram na memória.

"De grandes ceias estão as sepulturas cheias."

(um ditado popular.)

"É mais triste um títere degolado que um homem morto."

 

31
Jul20

O efeito da solidão em Groselhas

(Notas para um conto)

náuseas

groselha.png

O Groselhas é um amigo que conheci há cerca de cinco anos. É claro que ele não se chama Groselhas. Mas quando o conheci todos lhe chamavam Groselhas, de modo que só muito depois de o conhecer é que realmente lhe conheci o nome. Mas continuo a chamar-lhe Groselhas. É um tipo dois ou três anos mais velho que eu, um pouco mais baixo e gordito. Anda sempre dobrado e quando fala é difícil entender o que diz. Não que fale baixo, mas há algo no modo como pronuncia as vogais que torna a sua voz quase ininteligível. A voz é grave, de barítono, quente, mas parece ter a garganta demasiado apertada e as palavras saem-lhe esganadas.

Bom, mas não era nada disto que eu queria dizer. O Groselhas é um amigo que conheci há uns anos, quando comecei a frequentar a piscina municipal. Nessa altura eu conhecia lá ninguém, mas o Groselhas vem logo ter comigo. (Lembro-me de ter tido uma dificuldade monstra de o entender nesses tempos. Depois habituei-me.) Descobri que é um tipo excelente, muito sincero, óptimo conversador. É músico amador, toca saxofone na filarmónica da terra dele e adora falar sobre música. Ganhei o hábito de ir para a piscina mais cedo para conversarmos. Ele falava sobre Mahler, Bruckner, a segunda escola de Viena. E eu respondia como podia.

Claro que tudo isto acabou há uns meses quando fecharam as piscinas. Deixei de ver o Groselhas duas vezes por semana. Não tinha nenhum contacto dele, nem sequer sabia onde morava. Encontrei-o há dias acidentalmente. Lá ia todo curvado, mais gordito, de máscara. Cumprimento-o. Ele hesita um pouco e finalmente lá me responde. Mas não com o entusiasmo que lhe conhecia. Parecia cansadíssimo, desgastado. Perguntei-lhe como andava, o que lhe tinha acontecido durante este tempo todo e como é que tinha aguentado tanto tempo sem dar umas braçadas na piscina. Não se alongou muito nas respostas, que estava tudo bem, "Cá se vai andando com a cabeça entre elas" ("elas", as orelhas, para quem não identifica a referência que o Groselhas fez à música do Sérgio Godinho). Pouco falámos, mas consegui perceber que algo fundamental mudou no meu amigo durante este período. Não me falou de nenhum compositor obscuro que tinha descoberto, nem de uma nova gravação que tinha arranjado da sinfonia do Berio.

Fiquei-lhe com o número de telefone. Já lhe liguei, vamos beber uma mini amanhã.

30
Jul20

Pequenos nadas

náuseas

apathy.jpg

Passou-se isto há uns dias, num dia de imenso calor, ao fundo do Quebra-Costas em Coimbra. Quem conhece sabe bem o inferno que é subir aquela escadaria rumo às Sés (Velha e Nova). Principalmente num dia de calor como era aquele.

Numa esplanada logo a seguir ao Arco de Almedina estava uma família numa esplanada à espera que lhes servissem o almoço. Bebericavam as suas bebidas moles enquanto observavam o sofrimento de quem passava. Muitos turistas subiam e desciam aquela via, a maioria com ar abatido. Ao fundo, ainda a passar o arco, uma velhinha arrastava um saco, qual Sísifo ao iniciar mais uma ascensão. Empurrava a sua rocha com visível sofrimento e, chegado ao primeiro banco, sentou-se a descansar.

Entretanto, a tal família (pai e mãe nos quarenta, filha nos quinze), observava o suplício. Breve troca de palavras. "Coitada! Podia ir levar-lhe um pouco desta água." "Não sejas louca, achas que ela ia aceitar assim água de estranhos? Primeiro não tens um copo extra. Ainda por cima ela vai sem máscara."

Cerca de dez minutos volvidos, a velhinha lá ganha coragem e recomeça a escalada. "Pobre mulher. Achas que vá ajudá-la?" "É contigo. Se te apetece ir com ela, a carregar-lhe o saco sabe-se lá até onde, podes ir." A mãe hesitou um pouco. Colocou a máscara e foi ter com a velhinha. Ela não se fez rogada. Desdobrou-se em agradecimentos, passou-lhe o saco e a carteira, agarrou um braço da mãe e lá foram as duas. A velhinha a mancar e a mãe a servir de muleta. A velhinha morava num prédio um pouco acima, por isso a mãe regressou ainda antes do almoço chegar.

Durante a sua ausência: "Não sei como a mãe consegue. Eu não tenho coragem. Mesmo que queira muito ajudar, não consigo fazer o que a mãe fez." "Pois é, a mãe é assim. Ainda bem que temos pessoas como ela. O mundo estaria condenado se todos fossem como nós os dois."

Passou-se há poucos dias atrás. Eu vi. E também não fui ajudar a velhinha.

29
Jul20

Náuseas (2)

náuseas

Sempre me perturbou olhar o fundo escuro de um bosque em quincôncio. A sombra verde salpicada de luz relaxa-me mas desperta-me também uma inquietação que não consigo precisar, uma inquietação muito antiga. Consigo ficar imenso tempo a olhar o bosque, esquecido de tudo. Mas aos poucos a inquietação inflama até se tornar intolerável, e sou dominado por um terror quase religioso que me obriga a
afastar bruscamente os olhos, ou a fecha-los. É o mesmo pavor dos sonhos em que paralisamos perante um perigo irracional. Provavelmente um medo semelhante ao que fez os nossos antepassados inventarem os deuses.

Mas gosto muito de olhar um bosque em quincôncio. Porque sei que o pavor está cá dentro e que vai aparecer lentamente. Porque sei que o consigo fazer desaparecer a qualquer momento, assim que não conseguir aguentar mais.

 

10
Jul20

fragmentos (4)

náuseas

Vai amanhã a enterrar o sr. António. Bom homem. Na sexta-feira parecia muito cansado quando ia para a música. Parece que o maestro da banda o tratava muito mal, implicava com ele por não conseguir já tocar o trombone. E neste último ensaio o sr. António saiu a meio, sem dizer uma palavra, depois de ter sido novamente humilhado pelo mestre. Levantou-se, com um ar muito admirado, arrumou os seus papeis, limpou o trombone e dobrou a estante da música. Não respondeu a nada que lhe diziam. "Já vai sr. António?". "Então, sr. António? Não vale a pena ficar assim". "Está tudo bem?". Regressado a casa, deitou-se, adormeceu e não voltou a acordar. A dona Amélia diz que o estranhou, mal lhe falou, nem quis comer nada. Lá foi.

Desde pequeno que tocava trombone. Passava horas a estudar os passo-dobles e as marchas de procissão. Maravilhava-se com a música, apesar de nunca ter sido um bom músico. Mas adorava vestir a farda aos domingos, e descer a avenida a marchar enquanto se concentrava no papel da música. Nunca olhava para ninguém, nunca respondia a quem o cumprimentava do passeio.

O sr. António parece ter descoberto nessa última noite que não havia já lugar para ele. E deixar de tocar na banda da música era coisa impensável. Como continuar a viver sabendo que no domingo a banda ia à rua e ele ficaria em casa? Decidiu então que tinha limpo o trombone pela última vez.

 

04
Jul20

fragmentos (3)

náuseas

Dia fresco. Levantei-me cedo como sempre faço aos Domingos. Não porque tivesse muito a fazer, mas apenas por hábito. Saí de casa e fiquei a ver o nevoeiro lá fora, que lentamente dispersava, com o sol a começar a adivinhava-se na claridade difusa de aguarela. Gosto de sentir o frio doce arrepiar-me a pele, a humidade matinal como se fosse uma língua áspera de gato a lamber-me as pernas.

Infelizmente, os sinos da igreja lembraram-me que era também o dia da festa da vila, e logo o estrepitar dos foguetes expulsou a paz que o dia parecia prometer. Dia de festa, de foguetes, de confusão. Arrastaram-se então penosamente as horas, num ruidoso dia com muitas pessoas.

E o sr. António não foi tocar. Tinha-o visto na sexta-feira, de bicicleta, com o trombone. Ia para o ensaio. Mas hoje, dia da festa, não estava na banda. No trombone ia apenas o rapaz novo. Algo se terá passado com ele certamente.

22
Jun20

fragmentos (2)

náuseas

fragmento-02.jpg

Acordar muito cedo e ficar quieta, a escutar o vento no pomar. É o meu momento preferido do dia. Sentir o dia a esperguiçar-se lá fora, a querer prolongar a noite mais um pouco. Digo a mim mesma que a madrugada não vai acabar, finjo acreditar que a doçura desta penumbra matinal durará para sempre. Por vezes, nesses momentos, gosto de me concentrar nos meus dedos dos pés e começar a sentir os dedos cada vez mais longe e eu a ficar grande, cada vez maior, enorme.  É uma vertigem que tenho desde criança, consigo sentir quase fisicamente a imensidão do meu corpo que se alonga infinitamente até ficar tonta e ter de voltar ao meu corpo.

Por vezes um pássaro lá fora, um cão a ladrar, um galo. Recordam-me que em breve tudo irá terminar e a vida irá retomar. Lembro-me novamente, não sei porquê, do sr. António. Disseram-me que a música lhe corre mal, que há não sei que chatices lá na banda. Há tantos anos lá, a tocar trombone, e agora tentam pô-lo fora porque não há já lugar para ele.

 

15
Jun20

fragmentos (1)

náuseas

Lá vem ele, coitado. Parece muito cansado, devia deixar-se destas coisas. Não sei o que se passa, mas a cada semana parece pior. E eu devia também ir para casa. Dores de costas de estar a trabalhar aqui no quintal toda a tarde.  Outras dores mais profundas da fatiga desta vida, desta falta de esperança. Os filhos distraíram-me durante alguns anos, mas agora o vazio que eles deixaram
angustia-me e mostra-me que não fiz nada. Já passei dos cinquenta e existi da mesma maneira que a minha cadela. Comi, dormi, pari. E trabalhei. Em tempos quis escrever. Li muito, li tudo o que consegui. Mas a vida atrapalhou-me e agora ficou-me a amargura de ter falhado tudo.

"Já vai para a música, sr. António?"

Passei muitos anos a dizer a mim própria "Rosa, amanhã é que vai ser. Amanhã abres o teu caderno e começas a escrever o teu livro". Mas nunca aconteceu.   Por vezes até abri o caderno, e até conseguia escrever umas folhas. Mas desanimava rapidamente. No dia seguinte voltava atrás para ler o que tinha escrito, e riscava tudo.

  "Pois é, dona Rosa. Mais uma sexta-feira, mais um ensaio."

Pobre homem! Parece ter angústias maiores que as minhas. Mas tenho de ir embora, está quase na hora de jantar.