Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Náuseas

Neuras do dia-a-dia

Neuras do dia-a-dia

Náuseas

10
Jul20

fragmentos (4)

náuseas

Vai amanhã a enterrar o sr. António. Bom homem. Na sexta-feira parecia muito cansado quando ia para a música. Parece que o maestro da banda o tratava muito mal, implicava com ele por não conseguir já tocar o trombone. E neste último ensaio o sr. António saiu a meio, sem dizer uma palavra, depois de ter sido novamente humilhado pelo mestre. Levantou-se, com um ar muito admirado, arrumou os seus papeis, limpou o trombone e dobrou a estante da música. Não respondeu a nada que lhe diziam. "Já vai sr. António?". "Então, sr. António? Não vale a pena ficar assim". "Está tudo bem?". Regressado a casa, deitou-se, adormeceu e não voltou a acordar. A dona Amélia diz que o estranhou, mal lhe falou, nem quis comer nada. Lá foi.

Desde pequeno que tocava trombone. Passava horas a estudar os passo-dobles e as marchas de procissão. Maravilhava-se com a música, apesar de nunca ter sido um bom músico. Mas adorava vestir a farda aos domingos, e descer a avenida a marchar enquanto se concentrava no papel da música. Nunca olhava para ninguém, nunca respondia a quem o cumprimentava do passeio.

O sr. António parece ter descoberto nessa última noite que não havia já lugar para ele. E deixar de tocar na banda da música era coisa impensável. Como continuar a viver sabendo que no domingo a banda ia à rua e ele ficaria em casa? Decidiu então que tinha limpo o trombone pela última vez.