fragmentos (1)
Lá vem ele, coitado. Parece muito cansado, devia deixar-se destas coisas. Não sei o que se passa, mas a cada semana parece pior. E eu devia também ir para casa. Dores de costas de estar a trabalhar aqui no quintal toda a tarde. Outras dores mais profundas da fatiga desta vida, desta falta de esperança. Os filhos distraíram-me durante alguns anos, mas agora o vazio que eles deixaram
angustia-me e mostra-me que não fiz nada. Já passei dos cinquenta e existi da mesma maneira que a minha cadela. Comi, dormi, pari. E trabalhei. Em tempos quis escrever. Li muito, li tudo o que consegui. Mas a vida atrapalhou-me e agora ficou-me a amargura de ter falhado tudo.
"Já vai para a música, sr. António?"
Passei muitos anos a dizer a mim própria "Rosa, amanhã é que vai ser. Amanhã abres o teu caderno e começas a escrever o teu livro". Mas nunca aconteceu. Por vezes até abri o caderno, e até conseguia escrever umas folhas. Mas desanimava rapidamente. No dia seguinte voltava atrás para ler o que tinha escrito, e riscava tudo.
"Pois é, dona Rosa. Mais uma sexta-feira, mais um ensaio."
Pobre homem! Parece ter angústias maiores que as minhas. Mas tenho de ir embora, está quase na hora de jantar.