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Náuseas

Neuras do dia-a-dia

Neuras do dia-a-dia

Náuseas

07
Jul20

A náusea habitual

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Depois de muita burocracia (medir temperatura, desinfectar as mãos, calçar umas capas nos sapatos), lá consegui entrar. A senhora que me abriu a porta indica-me o local onde devo aguardar que me chamem para a consulta de medicina dentária. "Sente-se ali numa daquelas cadeirinhas, que já o vêem chamar."

Dirijo-me à zona indicada onde já duas ou três pessoas aguardam também que as chamem. Estão todas bastante distantes umas das outras, claro, e olham-me por detrás das suas máscaras. Aproximo-me de vários sofás num local afastado e reparo que em todos eles há um símbolo. Como é habitual, o meu único objectivo é sentar-me rapidamente, deixar de sentir o olhar das outras pessoas quanto
antes. Não presto atenção ao símbolo no sofá onde me sento, não penso nele. Apenas desejo ocultar-me.

Olho lá para fora, respiro profundamente, procuro recuperar a calma. Pouco a pouco começo a olhar à volta e a minha atenção cai finalmente no símbolo dos sofás. Um símbolo que indica que os sofás não devem ser utilizados. A calma desaparece novamente. Que fazer? Sinto o suor a começar a aflorar-me as têmporas, e não consigo decidir o que fazer. Levantar-me? Vou-me sentir idiota se o fizer, todos vão voltar a olhar-me. "Que palerma! Ignorou um sinal enorme!". E que me importa o que pensam? Vou levantar-me. Mas não levanto. Decido ignorar o símbolo. Mas isso é ainda mais idiota. Não sei o que fazer. Pode ser que me chamem rapidamente. Mas.. e quando me vierem chamar vão ver que estou sentado num local proibido, vão-me perguntar porque ignorei o sinal.

Volto a olhar lá para fora, tento retomar a calma respirando lentamente. Imenso tempo passou (quanto terá sido realmente?) até que por fim me chamam. Não me repreendem.

 

04
Jul20

fragmentos (3)

náuseas

Dia fresco. Levantei-me cedo como sempre faço aos Domingos. Não porque tivesse muito a fazer, mas apenas por hábito. Saí de casa e fiquei a ver o nevoeiro lá fora, que lentamente dispersava, com o sol a começar a adivinhava-se na claridade difusa de aguarela. Gosto de sentir o frio doce arrepiar-me a pele, a humidade matinal como se fosse uma língua áspera de gato a lamber-me as pernas.

Infelizmente, os sinos da igreja lembraram-me que era também o dia da festa da vila, e logo o estrepitar dos foguetes expulsou a paz que o dia parecia prometer. Dia de festa, de foguetes, de confusão. Arrastaram-se então penosamente as horas, num ruidoso dia com muitas pessoas.

E o sr. António não foi tocar. Tinha-o visto na sexta-feira, de bicicleta, com o trombone. Ia para o ensaio. Mas hoje, dia da festa, não estava na banda. No trombone ia apenas o rapaz novo. Algo se terá passado com ele certamente.

03
Jul20

Se não fosse humano gostaria de ser uma Efémera

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Se não fosse humano gostaria de ser uma Efémera. Não que goste particularmente de insectos (tenho pavor de aranhas!), mas sempre invejei a fugacidade que é a vida deste pequeno animal. Ter tido uma vida em que apenas a infância contou e onde tudo fluiu docemente no leito de um rio.

Quando esta fase da vida finalmente termina e a idade adulta chega, deixa de ser necessário comer, beber ou dormir. Restam apenas algumas horas nesta fase final, passadas a voar e a tentar propagar a espécie. E tudo termina rapidamente, a Efémera extingue-se suavemente na água. Um ciclo doce. Uma existência fugaz.

 

(Isto foi o desafio: o outro animal lançado pela Ana.)

 

23
Jun20

Serenata Sintética

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Eis um curioso poema que hoje aprendi:

Lua
morta.

Rua
torta.

Tua
porta.

É de Cassiano Ricardo, um poeta brasileiro que desconhecia (na realidade não conheço muito da literatura brasileira). Foi-me dado a conhecer pela Ana Luísa Amaral, num programa da Antena 2 que sigo há já bastante tempo chamado O Som que os Versos Fazem ao Abrir (nome fantástico, de um poema de Emily Dickinson!).

Uma nota curiosa acerca do poema (dada pela Ana Luísa Amaral, claro!) é que é todo feito com pequenas mudanças de letras:

Rua torta.

Lua morta.

Tua porta.

Mais um poeta a investigar.

 

22
Jun20

fragmentos (2)

náuseas

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Acordar muito cedo e ficar quieta, a escutar o vento no pomar. É o meu momento preferido do dia. Sentir o dia a esperguiçar-se lá fora, a querer prolongar a noite mais um pouco. Digo a mim mesma que a madrugada não vai acabar, finjo acreditar que a doçura desta penumbra matinal durará para sempre. Por vezes, nesses momentos, gosto de me concentrar nos meus dedos dos pés e começar a sentir os dedos cada vez mais longe e eu a ficar grande, cada vez maior, enorme.  É uma vertigem que tenho desde criança, consigo sentir quase fisicamente a imensidão do meu corpo que se alonga infinitamente até ficar tonta e ter de voltar ao meu corpo.

Por vezes um pássaro lá fora, um cão a ladrar, um galo. Recordam-me que em breve tudo irá terminar e a vida irá retomar. Lembro-me novamente, não sei porquê, do sr. António. Disseram-me que a música lhe corre mal, que há não sei que chatices lá na banda. Há tantos anos lá, a tocar trombone, e agora tentam pô-lo fora porque não há já lugar para ele.

 

16
Jun20

O dia de Leopold Bloom

náuseas

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Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl of lather on which a mirror and a razor lay crossed. A yellow dressinggown, ungirdled, was sustained gently behind him on the mild morning air. He held the bowl aloft and intoned:

Introibo ad altare Dei.

Assim começa o imenso "Ulisses" de James Joyce, e assim começa a epopeia que é o dia 16 de Junho de 1904.  Foi já há imenso tempo que o li.  Não na língua original mas em português.  Mas lembro-me que me marcou pelo estilo, pelo modernismo, pela incrível dificuldade que tive de me embrenhar no stream-of-consciousness.  Claro que apenas apreendi a superfície da obra e uma releitura está já prometida há muito.

Um feliz (resto de) Bloomsday!

 

15
Jun20

fragmentos (1)

náuseas

Lá vem ele, coitado. Parece muito cansado, devia deixar-se destas coisas. Não sei o que se passa, mas a cada semana parece pior. E eu devia também ir para casa. Dores de costas de estar a trabalhar aqui no quintal toda a tarde.  Outras dores mais profundas da fatiga desta vida, desta falta de esperança. Os filhos distraíram-me durante alguns anos, mas agora o vazio que eles deixaram
angustia-me e mostra-me que não fiz nada. Já passei dos cinquenta e existi da mesma maneira que a minha cadela. Comi, dormi, pari. E trabalhei. Em tempos quis escrever. Li muito, li tudo o que consegui. Mas a vida atrapalhou-me e agora ficou-me a amargura de ter falhado tudo.

"Já vai para a música, sr. António?"

Passei muitos anos a dizer a mim própria "Rosa, amanhã é que vai ser. Amanhã abres o teu caderno e começas a escrever o teu livro". Mas nunca aconteceu.   Por vezes até abri o caderno, e até conseguia escrever umas folhas. Mas desanimava rapidamente. No dia seguinte voltava atrás para ler o que tinha escrito, e riscava tudo.

  "Pois é, dona Rosa. Mais uma sexta-feira, mais um ensaio."

Pobre homem! Parece ter angústias maiores que as minhas. Mas tenho de ir embora, está quase na hora de jantar.

12
Jun20

O meu rosto em cem palavras

náuseas

Aborrecido, vi por acaso o desafio "descreve o teu rosto em cem palavras" num blog da Miss X.  Porque não?

olho-me no espelho
e encontro novamente a tristeza nos olhos
tristeza que vem já de muito longe
do tempo em que eu, fauno, pulava alegre
na vida e nos outros
tristeza que se estende ao sorriso
e que se confunde frequentemente com ironia

olho-me no espelho
e vejo o que fui
na lembrança de ter tido cabelo
troquei-o por sonhos que amargam agora na boca
azedaram os sonhos e encovaram os olhos
antes ter cabelo que sonhos
mas é tarde
o fauno morreu deixou apenas a flauta que ninguém toca

olho-me no espelho
e vejo um rosto cinzento, magro e sem ilusões

 

09
Jun20

Mudar o modo de ler

náuseas

Há vários livros que comecei a ler e acabo por desistir porque deixo de conseguir acompanhar o autor no fluxo do texto. São tipicamente livros difíceis, de conteúdo denso, que implicam pausas regulares para pesquisar conceitos que o autor assume que o leitor domina, e que, muitas vezes, usam um estilo obscuro que torna a compreensão ainda mais complicada. Consigo dar vários exemplos destes livros, mas o que me vem sempre à mente é "O Ser e o Nada", de Sartre. Conheço razoavelmente bem o seu conteúdo, li imensas coisas acerca dele. Mas o livro propriamente dito... ainda não.

Estou neste momento a tentar um novo método para ler este tipo de livros particularmente difíceis. Nunca tirei muitas notas nas minhas leituras; por vezes escrevia umas linhas quando terminava, fazia umas poucas anotações nas margens. O que vou tentar é mudar agora é isso. Ou seja, vou tentar anotar o texto e, principalmente, tirar notas num caderno à parte. Sei que isto vai diminuir bastante a minha velocidade de leitura (já bastante lenta!), mas tenho de tentar criar uma rotina que me permita melhor a capacidade de assimilar livros que acho complexos. Vou experimentar primeiro com livros pequenos (mas não necessariamente de fácil leitura!) e ver no que dá. E quem sabe se um dia não conseguirei ler o magnum opus do Sartre!