Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Náuseas

Neuras do dia-a-dia

Neuras do dia-a-dia

Náuseas

31
Jul20

O efeito da solidão em Groselhas

(Notas para um conto)

náuseas

groselha.png

O Groselhas é um amigo que conheci há cerca de cinco anos. É claro que ele não se chama Groselhas. Mas quando o conheci todos lhe chamavam Groselhas, de modo que só muito depois de o conhecer é que realmente lhe conheci o nome. Mas continuo a chamar-lhe Groselhas. É um tipo dois ou três anos mais velho que eu, um pouco mais baixo e gordito. Anda sempre dobrado e quando fala é difícil entender o que diz. Não que fale baixo, mas há algo no modo como pronuncia as vogais que torna a sua voz quase ininteligível. A voz é grave, de barítono, quente, mas parece ter a garganta demasiado apertada e as palavras saem-lhe esganadas.

Bom, mas não era nada disto que eu queria dizer. O Groselhas é um amigo que conheci há uns anos, quando comecei a frequentar a piscina municipal. Nessa altura eu conhecia lá ninguém, mas o Groselhas vem logo ter comigo. (Lembro-me de ter tido uma dificuldade monstra de o entender nesses tempos. Depois habituei-me.) Descobri que é um tipo excelente, muito sincero, óptimo conversador. É músico amador, toca saxofone na filarmónica da terra dele e adora falar sobre música. Ganhei o hábito de ir para a piscina mais cedo para conversarmos. Ele falava sobre Mahler, Bruckner, a segunda escola de Viena. E eu respondia como podia.

Claro que tudo isto acabou há uns meses quando fecharam as piscinas. Deixei de ver o Groselhas duas vezes por semana. Não tinha nenhum contacto dele, nem sequer sabia onde morava. Encontrei-o há dias acidentalmente. Lá ia todo curvado, mais gordito, de máscara. Cumprimento-o. Ele hesita um pouco e finalmente lá me responde. Mas não com o entusiasmo que lhe conhecia. Parecia cansadíssimo, desgastado. Perguntei-lhe como andava, o que lhe tinha acontecido durante este tempo todo e como é que tinha aguentado tanto tempo sem dar umas braçadas na piscina. Não se alongou muito nas respostas, que estava tudo bem, "Cá se vai andando com a cabeça entre elas" ("elas", as orelhas, para quem não identifica a referência que o Groselhas fez à música do Sérgio Godinho). Pouco falámos, mas consegui perceber que algo fundamental mudou no meu amigo durante este período. Não me falou de nenhum compositor obscuro que tinha descoberto, nem de uma nova gravação que tinha arranjado da sinfonia do Berio.

Fiquei-lhe com o número de telefone. Já lhe liguei, vamos beber uma mini amanhã.

30
Jul20

Pequenos nadas

náuseas

apathy.jpg

Passou-se isto há uns dias, num dia de imenso calor, ao fundo do Quebra-Costas em Coimbra. Quem conhece sabe bem o inferno que é subir aquela escadaria rumo às Sés (Velha e Nova). Principalmente num dia de calor como era aquele.

Numa esplanada logo a seguir ao Arco de Almedina estava uma família numa esplanada à espera que lhes servissem o almoço. Bebericavam as suas bebidas moles enquanto observavam o sofrimento de quem passava. Muitos turistas subiam e desciam aquela via, a maioria com ar abatido. Ao fundo, ainda a passar o arco, uma velhinha arrastava um saco, qual Sísifo ao iniciar mais uma ascensão. Empurrava a sua rocha com visível sofrimento e, chegado ao primeiro banco, sentou-se a descansar.

Entretanto, a tal família (pai e mãe nos quarenta, filha nos quinze), observava o suplício. Breve troca de palavras. "Coitada! Podia ir levar-lhe um pouco desta água." "Não sejas louca, achas que ela ia aceitar assim água de estranhos? Primeiro não tens um copo extra. Ainda por cima ela vai sem máscara."

Cerca de dez minutos volvidos, a velhinha lá ganha coragem e recomeça a escalada. "Pobre mulher. Achas que vá ajudá-la?" "É contigo. Se te apetece ir com ela, a carregar-lhe o saco sabe-se lá até onde, podes ir." A mãe hesitou um pouco. Colocou a máscara e foi ter com a velhinha. Ela não se fez rogada. Desdobrou-se em agradecimentos, passou-lhe o saco e a carteira, agarrou um braço da mãe e lá foram as duas. A velhinha a mancar e a mãe a servir de muleta. A velhinha morava num prédio um pouco acima, por isso a mãe regressou ainda antes do almoço chegar.

Durante a sua ausência: "Não sei como a mãe consegue. Eu não tenho coragem. Mesmo que queira muito ajudar, não consigo fazer o que a mãe fez." "Pois é, a mãe é assim. Ainda bem que temos pessoas como ela. O mundo estaria condenado se todos fossem como nós os dois."

Passou-se há poucos dias atrás. Eu vi. E também não fui ajudar a velhinha.

29
Jul20

Náuseas (2)

náuseas

Sempre me perturbou olhar o fundo escuro de um bosque em quincôncio. A sombra verde salpicada de luz relaxa-me mas desperta-me também uma inquietação que não consigo precisar, uma inquietação muito antiga. Consigo ficar imenso tempo a olhar o bosque, esquecido de tudo. Mas aos poucos a inquietação inflama até se tornar intolerável, e sou dominado por um terror quase religioso que me obriga a
afastar bruscamente os olhos, ou a fecha-los. É o mesmo pavor dos sonhos em que paralisamos perante um perigo irracional. Provavelmente um medo semelhante ao que fez os nossos antepassados inventarem os deuses.

Mas gosto muito de olhar um bosque em quincôncio. Porque sei que o pavor está cá dentro e que vai aparecer lentamente. Porque sei que o consigo fazer desaparecer a qualquer momento, assim que não conseguir aguentar mais.

 

24
Jul20

Dubliners, The Dead

náuseas

dubliners.jpg

Reli há dias estes contos de Joyce, numa espécie de comemoração do Bloomsday em ponto pequeno (sim, porque Dubliners é tremendamente mais fácil de ler que o Ulisses). Confesso que me lembrava de muito pouco, apenas alguns dos contos me vinham vagamente à memória. Julgo que quando li Dubliners pela primeira vez o livro não me impressionou. Tudo sinais de que provavelmente o tinha lido mal.

A re-leitura fez-me ver tudo com novos olhos. Adorei todos os contos. Retratam uma Irlanda antiga, uma Irlanda presa à religião (ou religiões), uma Irlanda que lutava consigo própria, dividida entre aqueles que querem um país livre e os que vivem alegremente na vassalagem à coroa Britânica. Todos os contos mostram um pouco dessa realidade.  Mas foi o último destes contos, 'The Dead', que mais me impressionou.

Conta a história de Gabriel, um professor que também escreve critica literária para um jornal.  Começa por ser apresentado como alguém bastante seguro e adorado pelas suas velhas tias.  Mas vamos lentamente percebendo que Gabriel não é realmente assim tão seguro de si próprio.  Começa a notar-se isso quando ele se questiona acerca do discurso que preparou. Ou nos dois episódios com a Lily e depois com a Miss Ivors, em que fica embaraçado e sem saber como reagir.

O conto toca muitas outras temáticas, como por exemplo o nacionalismo Irlandês, com referências aos movimentos que tentam reavivar a própria língua Gaélica.  E para o final do conto o génio de Joyce reserva ainda uma surpreendente introspecção feita por Gabriel, depois de malograda a sua luxúria, acerca da morte e da vida banal que tem levado até então.  Como é que tudo isto cabe dentro de um pequeno conto?  E... como é que eu não me lembrava de que já o ter lido antes?

 

10
Jul20

fragmentos (4)

náuseas

Vai amanhã a enterrar o sr. António. Bom homem. Na sexta-feira parecia muito cansado quando ia para a música. Parece que o maestro da banda o tratava muito mal, implicava com ele por não conseguir já tocar o trombone. E neste último ensaio o sr. António saiu a meio, sem dizer uma palavra, depois de ter sido novamente humilhado pelo mestre. Levantou-se, com um ar muito admirado, arrumou os seus papeis, limpou o trombone e dobrou a estante da música. Não respondeu a nada que lhe diziam. "Já vai sr. António?". "Então, sr. António? Não vale a pena ficar assim". "Está tudo bem?". Regressado a casa, deitou-se, adormeceu e não voltou a acordar. A dona Amélia diz que o estranhou, mal lhe falou, nem quis comer nada. Lá foi.

Desde pequeno que tocava trombone. Passava horas a estudar os passo-dobles e as marchas de procissão. Maravilhava-se com a música, apesar de nunca ter sido um bom músico. Mas adorava vestir a farda aos domingos, e descer a avenida a marchar enquanto se concentrava no papel da música. Nunca olhava para ninguém, nunca respondia a quem o cumprimentava do passeio.

O sr. António parece ter descoberto nessa última noite que não havia já lugar para ele. E deixar de tocar na banda da música era coisa impensável. Como continuar a viver sabendo que no domingo a banda ia à rua e ele ficaria em casa? Decidiu então que tinha limpo o trombone pela última vez.

 

07
Jul20

A náusea habitual

náuseas

Depois de muita burocracia (medir temperatura, desinfectar as mãos, calçar umas capas nos sapatos), lá consegui entrar. A senhora que me abriu a porta indica-me o local onde devo aguardar que me chamem para a consulta de medicina dentária. "Sente-se ali numa daquelas cadeirinhas, que já o vêem chamar."

Dirijo-me à zona indicada onde já duas ou três pessoas aguardam também que as chamem. Estão todas bastante distantes umas das outras, claro, e olham-me por detrás das suas máscaras. Aproximo-me de vários sofás num local afastado e reparo que em todos eles há um símbolo. Como é habitual, o meu único objectivo é sentar-me rapidamente, deixar de sentir o olhar das outras pessoas quanto
antes. Não presto atenção ao símbolo no sofá onde me sento, não penso nele. Apenas desejo ocultar-me.

Olho lá para fora, respiro profundamente, procuro recuperar a calma. Pouco a pouco começo a olhar à volta e a minha atenção cai finalmente no símbolo dos sofás. Um símbolo que indica que os sofás não devem ser utilizados. A calma desaparece novamente. Que fazer? Sinto o suor a começar a aflorar-me as têmporas, e não consigo decidir o que fazer. Levantar-me? Vou-me sentir idiota se o fizer, todos vão voltar a olhar-me. "Que palerma! Ignorou um sinal enorme!". E que me importa o que pensam? Vou levantar-me. Mas não levanto. Decido ignorar o símbolo. Mas isso é ainda mais idiota. Não sei o que fazer. Pode ser que me chamem rapidamente. Mas.. e quando me vierem chamar vão ver que estou sentado num local proibido, vão-me perguntar porque ignorei o sinal.

Volto a olhar lá para fora, tento retomar a calma respirando lentamente. Imenso tempo passou (quanto terá sido realmente?) até que por fim me chamam. Não me repreendem.

 

04
Jul20

fragmentos (3)

náuseas

Dia fresco. Levantei-me cedo como sempre faço aos Domingos. Não porque tivesse muito a fazer, mas apenas por hábito. Saí de casa e fiquei a ver o nevoeiro lá fora, que lentamente dispersava, com o sol a começar a adivinhava-se na claridade difusa de aguarela. Gosto de sentir o frio doce arrepiar-me a pele, a humidade matinal como se fosse uma língua áspera de gato a lamber-me as pernas.

Infelizmente, os sinos da igreja lembraram-me que era também o dia da festa da vila, e logo o estrepitar dos foguetes expulsou a paz que o dia parecia prometer. Dia de festa, de foguetes, de confusão. Arrastaram-se então penosamente as horas, num ruidoso dia com muitas pessoas.

E o sr. António não foi tocar. Tinha-o visto na sexta-feira, de bicicleta, com o trombone. Ia para o ensaio. Mas hoje, dia da festa, não estava na banda. No trombone ia apenas o rapaz novo. Algo se terá passado com ele certamente.

03
Jul20

Se não fosse humano gostaria de ser uma Efémera

náuseas

mayfly.jpg

Se não fosse humano gostaria de ser uma Efémera. Não que goste particularmente de insectos (tenho pavor de aranhas!), mas sempre invejei a fugacidade que é a vida deste pequeno animal. Ter tido uma vida em que apenas a infância contou e onde tudo fluiu docemente no leito de um rio.

Quando esta fase da vida finalmente termina e a idade adulta chega, deixa de ser necessário comer, beber ou dormir. Restam apenas algumas horas nesta fase final, passadas a voar e a tentar propagar a espécie. E tudo termina rapidamente, a Efémera extingue-se suavemente na água. Um ciclo doce. Uma existência fugaz.

 

(Isto foi o desafio: o outro animal lançado pela Ana.)