O efeito da solidão em Groselhas
(Notas para um conto)
O Groselhas é um amigo que conheci há cerca de cinco anos. É claro que ele não se chama Groselhas. Mas quando o conheci todos lhe chamavam Groselhas, de modo que só muito depois de o conhecer é que realmente lhe conheci o nome. Mas continuo a chamar-lhe Groselhas. É um tipo dois ou três anos mais velho que eu, um pouco mais baixo e gordito. Anda sempre dobrado e quando fala é difícil entender o que diz. Não que fale baixo, mas há algo no modo como pronuncia as vogais que torna a sua voz quase ininteligível. A voz é grave, de barítono, quente, mas parece ter a garganta demasiado apertada e as palavras saem-lhe esganadas.
Bom, mas não era nada disto que eu queria dizer. O Groselhas é um amigo que conheci há uns anos, quando comecei a frequentar a piscina municipal. Nessa altura eu conhecia lá ninguém, mas o Groselhas vem logo ter comigo. (Lembro-me de ter tido uma dificuldade monstra de o entender nesses tempos. Depois habituei-me.) Descobri que é um tipo excelente, muito sincero, óptimo conversador. É músico amador, toca saxofone na filarmónica da terra dele e adora falar sobre música. Ganhei o hábito de ir para a piscina mais cedo para conversarmos. Ele falava sobre Mahler, Bruckner, a segunda escola de Viena. E eu respondia como podia.
Claro que tudo isto acabou há uns meses quando fecharam as piscinas. Deixei de ver o Groselhas duas vezes por semana. Não tinha nenhum contacto dele, nem sequer sabia onde morava. Encontrei-o há dias acidentalmente. Lá ia todo curvado, mais gordito, de máscara. Cumprimento-o. Ele hesita um pouco e finalmente lá me responde. Mas não com o entusiasmo que lhe conhecia. Parecia cansadíssimo, desgastado. Perguntei-lhe como andava, o que lhe tinha acontecido durante este tempo todo e como é que tinha aguentado tanto tempo sem dar umas braçadas na piscina. Não se alongou muito nas respostas, que estava tudo bem, "Cá se vai andando com a cabeça entre elas" ("elas", as orelhas, para quem não identifica a referência que o Groselhas fez à música do Sérgio Godinho). Pouco falámos, mas consegui perceber que algo fundamental mudou no meu amigo durante este período. Não me falou de nenhum compositor obscuro que tinha descoberto, nem de uma nova gravação que tinha arranjado da sinfonia do Berio.
Fiquei-lhe com o número de telefone. Já lhe liguei, vamos beber uma mini amanhã.